domingo, junho 10, 2012

DISFUNÇÕES LÍRICAS: DELÍRIOS VERBAIS DE UM POETA MATO-GROSSENSE


Maria Elizabete Nascimento de Oliveira


Este trabalho objetiva discorrer um dos delírios verbais do poeta mato-grossense Manoel de Barros (2010) – a transfiguração da natureza em palavras - a qual contribui como colírio para desempregnar de nossos olhos a tinta com a qual nos pintaram os sentidos durante décadas de existência e nos fazem compreender o poder da poesia em con-tato com a essência humana. A partir dessa visão crianceira do poeta, propomos nos despir dos conceitos e acepções impostas pelos valores tradicionais e, assim, construirmos outras imagens do ser humano/mundo, das quais podem brotar por meio da essência que percorre nas/pelas despalavras manoelinas, autonomia e liberdade.

PALAVRAS-CHAVE: Linguagem. Poesia. Liberdade.


1.            INTRODUÇÃO

Nossas palavras se ajuntavam uma na outra era por amor e não por sintaxe.
Manoel de Barros

Ao enveredar por entre as trilhas da poesia manoelina temos a nítida percepção de que tudo que abordarmos a respeito da produção desse poeta ainda se trata de olhares de principiante, pois tal qual uma fonte inesgotável de águas corredeiras, as despalavras desse pantaneiro nos possibilitam percorrer sempre por mares nunca dantes navegados[1], sem saber se estamos vamos aportar, pois a cada leitura Barros nos surpreende com novas imagens, que por sua vez, gestam outros sentidos.
A visão crianceira do poeta Mato-grossense Manoel de Barros é a responsável por seus delírios verbais, pois por intemédio de um olhar destituído de normas e convenções, um olhar sempre de novidade diante das coisas presentes no mundo, o autor apresenta suas cosmovisões. Com elas aprendemos que antes de nos depararmos com um mundo regido por normas e convenções sociais, já fizemos parte de um uni-verso pautado nas percepções sensoriais. A exemplo disso, na primeira infância reconhecemos nossa mãe pelo cheiro, pelo som da voz, pelo tato, mesmo antes de aprender a falar. É nessa versão original de ser humano, que o poeta apresenta a natureza por meio de suas despalavras, pois somente por intermédio delas, é possível vislumbrar a natureza em sua intimidade, com sua diversidade de cores, saberes e sabores.

2  DELÍRIOS VERBAIS DE UM POETA MATO-GROSSENSE

 No vocábulo (des)palavras, torna-se necessário o prefixo des porque não se trata de palavras utilizadas pelo ser humano na acepção convencional, mas de algumas que nos assaltam em seu sentido originário. Portanto, nesse mundo onde as coisas da natureza se apresentam destituídas de convenções, buscamos na tríade merleaupontyana (1999), eu-outro-mundo, investigar e sentir como este ser humano impar mato-grossense deixou-se contaminar pela palavra, nos presenteando com uma percepção ética e estética do mundo. Neste contexto, onde a aparência e a essência se contrapõem, é que buscamos trazer para a reflexão a transcendência possível nas asas incandescentes da poesia.

PALAVRAS

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que uma palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois  que desestruturaram a linguagem. E não eu.
(BARROS,  2010 p. 392-393)


Impregnado pela natureza pantaneira, o poeta, com suas despalavras, transcende os deslimites do pantanal mato-grossense e nos abrem as janelas para outros mundos, lugares esses que abrangem uma visão global do estar no mundo, fazendo história com as outras coisas, as quais também partilham desse mesmo espaço, criadouro de imagens. Assim, Barros levanta nas pequenas coisas do chão, teias de aprendizagens que nos mostram a grandeza de nos enxergar como integrante ao meio em que vivemos.
É com esta arte/brincadeira realizada por meio das palavras que o poeta consegue embevecer o leitor e emaranhá-lo no seu enredo gestador de sentidos. Portanto, se são as palavras que assaltam o poeta, elas devem ser percebidas por suas disfunções e não por sua ação inflexível de significar. Neste sentido, é preciso compreendermos que:

Cada vez que nos servimos das palavras, as mutilamos. O poeta, porém, não se serve de palavras. É seu servo. Ao servi-las, devolve-as à sua plena natureza, fá-las recuperar seu ser. Graças à poesia, a linguagem reconquista seu estado original. Primeiramente, seus valores plásticos e sonoros, em geral desdenhados pelo pensamento; em seguida, os afetivos; por fim, os significativos. Purificar a linguagem, tarefa do poeta, significa devolver-lhe sua natureza original (PAZ, 1982, p. 58).

Transformando a natureza em palavras, o poeta devolve-lhe também o seu estado original, onde esta não mais é concebida ao usufruto do ser humano, ao contrário é vista como ele próprio, ser humano/mundo aliado à busca incessante pelo bem viver em comunhão com o outro. A unicidade natureza/ser humano torna-se necessária para se perceber as outras coisas que, juntamente, com ele, perfazem o meio ambiente. Visto sobre este ângulo o poeta se apresenta como um ser humano rebelde, que ao invés de contaminá-la com seus conceitos prévios, se deixa contaminar por ela, fazendo transparecer pela linguagem a gênese fecunda e promíscua da natureza.

Natureza é força que inunda como os desertos.
Que me enche de flores, calores, insetos – e me
Entorpece até a paradeza total dos reatores.
Então eu apodreço para a poesia.

Compreendemos que as palavras, ao impregnar o poeta emprenhado pela natureza, corrompem os veios da linguagem. Assim, com sua alma de menino, ao sair da sua concha a brincar com as palavras, desestrutura a linguagem e, assim, a metamorfose acontece - é poesia. Neste espaço não se permite hierarquias, não há poder classificador, fator que fornece abertura para que Manoel declare:

[...]
Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades (BARROS, 2010, p. 07).

As palavras que fazem uso do poeta são aquelas que ainda rastejam no chão, que não foram contaminadas pela verdade operante. É urgente compreendermos que a sofisticação da poesia manoelina se projeta nos dejetos da sociedade moderna, tudo que é ignorado pela nossa civilização é para o poeta elemento de poesia. É o nada que pelo olhar do poeta torna-se instituinte, ele tira muitas palavras do sentido (in)significante do dicionário, mostra a vivacidade dos resíduos rejeitados pela sociedade capitalista e transforma-os em poesia, recriando a partir do primitivo novas possibilidades de enxergar as inutilidades do mundo. Neste viés, talvez seja possível compreender o princípio da metamorfose que sofrem as despalavras manoelinas.
É nesta espiral que é possível entrelaçar culturas, que é possível sonhar com sociedades sustentáveis. Por isso, a linguagem que desestrutura o poeta; são entrecruzamentos que nos provocam a repensar os dogmas presentes na sociedade. Despalavras que se tornam cada vez mais fecundas, à necessidade do sonhar, do despertar, para que consigamos visualizar as relações de poder que operam no âmbito social. Relações estas que, anulando as subjetividades tornam-se injustas diante da diversidade e complexidade do mundo.
Barros reforça, em inúmeros momentos, que com suas despalavras, nunca quis dizer nada, apenas construir brinquedos com as palavras, ou quem sabe, transformar-se em palavras para germinar esperanças. Assim, acredito que o poeta, na sua grandeza existencial, talvez queira apenas nos incitar para o nosso nada mais profundo e, tal qual Martin Buber, queira nos dizer: “não tenho ensinamentos a transmitir [...] tomo aquele que me ouve pela mão e o levo até a janela. Abro-a e aponto para fora. Não tenho ensinamento algum, mas conduzo um diálogo” (BUBER apud ZUBEN, 1977, p.LXIX). As palavras que desacomodam o poeta e que desestruturam a linguagem são aquelas que foram abandonadas pelo mundo das convenções, deixadas na sarjeta. Elas nos convidam a criar sentidos, a perceber que, “só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros” (FREIRE, 1987, p.58).

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não
aceito.
Não agüento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
Que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

(BARROS, 2010, p. 374)

Manoel declara que seu intento maior[2], é transformar a natureza em palavras, que é assaltado por elas de tal modo que torna impossível não lhes dar ouvido. As palavras usam o poeta criador, que com sua visão crianceira sai perambulando pelo pantanal de Mato Grosso, fazendo peraltices que impulsionam as palavras a (des)estruturar não só a linguagem, como também a percepção que temos de natureza. E, assim, “feitas de matéria inflamada, as palavras se incendeiam mal são roçadas pela imaginação ou pela fantasia” (PAZ, 1982, p.42).

3 (IN) CONCLUSÃO

Manoel de Barros se apresenta envolto na relação interativa da linguagem com as coisas do chão e, contaminado pelas palavras mostra que tanto na poética quanto no ambiente natural, as percepções se multiplicam e mobilizam as subjetividades dos sujeitos, construindo redes que contribuam para que amoleçam a estrutura rígida da sociedade atual, onde a verdade que opera na diversidade tem uma roupagem única. Esta compreensão nos conduz a um processo de aprendizagens que se articulam, se desfazem e se refazem no contato com o outro, movimentos que somatizam saberes, mostrando que é possível e necessário o aprender com o outro.
Longe de apresentar uma linguagem simplista ou palavras ingênuas, trata-se, o poeta, de um ser humano composto por palavras, que com suas andarilhagens pelo mundo saiu da concha (pantanal de Mato Grosso) a semear despalavras, por todos os lugares pelos quais passou ou sonhou, delas brotaram aves, passarinhos, árvores, gentes... e coisas. É a natureza (ser humano) transformada em palavras. Estas coisas que levantam a poética do/no mundo.

4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Manoel. Poesias completas. São Paulo: Leya. 2010.
BUBER, Martin. Eu e tu. Intr. e Trad. Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Cortez & Moraes, 1977.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Cortez, 1987.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.


[1] Frase proferida pelo poeta português Luís Vaz de Camões, no período das grandes navegações, as quais expandiram o mapa do mundo por meio de novos continentes.
[2] Desejo descrito pelo poeta, na carta endereçada à autora, em julho de 2010.

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