Maria Elizabete Nascimento de Oliveira
Este trabalho objetiva discorrer um dos delírios verbais
do poeta mato-grossense Manoel de Barros (2010) – a transfiguração da natureza
em palavras - a qual contribui como colírio para desempregnar de nossos olhos a
tinta com a qual nos pintaram os sentidos durante décadas de existência e nos
fazem compreender o poder da poesia em con-tato
com a essência humana. A partir dessa visão crianceira
do poeta, propomos nos despir dos conceitos e acepções impostas pelos valores
tradicionais e, assim, construirmos outras imagens do ser humano/mundo, das
quais podem brotar por meio da essência que percorre nas/pelas despalavras manoelinas, autonomia e
liberdade.
PALAVRAS-CHAVE:
Linguagem. Poesia. Liberdade.
1.
INTRODUÇÃO
Nossas palavras se ajuntavam uma na
outra era por amor e não por sintaxe.
Manoel de Barros
Ao enveredar por entre as trilhas da poesia
manoelina temos a nítida percepção de que tudo que abordarmos a respeito da
produção desse poeta ainda se trata de olhares de principiante, pois tal qual
uma fonte inesgotável de águas corredeiras, as despalavras desse pantaneiro nos
possibilitam percorrer sempre por mares nunca dantes navegados[1],
sem saber se estamos vamos aportar, pois a cada leitura Barros nos
surpreende com novas imagens, que por sua vez, gestam outros sentidos.
A visão crianceira do poeta Mato-grossense
Manoel de Barros é a responsável por seus delírios verbais, pois por intemédio
de um olhar destituído de normas e convenções, um olhar sempre de novidade
diante das coisas presentes no mundo, o autor apresenta suas cosmovisões. Com
elas aprendemos que antes de nos depararmos com um mundo regido por normas e
convenções sociais, já fizemos parte de um uni-verso pautado nas percepções
sensoriais. A exemplo disso, na primeira infância reconhecemos nossa mãe pelo
cheiro, pelo som da voz, pelo tato, mesmo antes de aprender a falar. É nessa
versão original de ser humano, que o poeta apresenta a natureza por meio de
suas despalavras, pois somente por intermédio delas, é possível vislumbrar a
natureza em sua intimidade, com sua diversidade de cores, saberes e sabores.
2 DELÍRIOS VERBAIS DE UM POETA MATO-GROSSENSE
No
vocábulo (des)palavras, torna-se necessário o prefixo des porque não se trata
de palavras utilizadas pelo ser humano na acepção convencional, mas de algumas
que nos assaltam em seu sentido originário. Portanto, nesse mundo onde as
coisas da natureza se apresentam destituídas de convenções, buscamos na tríade
merleaupontyana (1999), eu-outro-mundo, investigar e sentir como este ser humano impar mato-grossense deixou-se
contaminar pela palavra, nos presenteando com uma percepção ética e estética do
mundo. Neste contexto, onde a aparência e a essência se contrapõem, é que
buscamos trazer para a reflexão a transcendência possível nas asas
incandescentes da poesia.
PALAVRAS
Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu
desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma
palavra e tira o lugar debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado.
Eu não fazia nada para que uma palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem
atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar debaixo de mim o lugar, eu
desaprumei. Ali só havia um grilo com sua flauta de couro. O grilo feridava o
silêncio. Os moradores do lugar se queixam do grilo. Veio uma palavra e retirou
o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou
foram as palavras? E o lugar que retiraram debaixo de mim? Não era para terem
retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.
(BARROS, 2010 p. 392-393)
Impregnado pela natureza pantaneira, o poeta,
com suas despalavras, transcende os deslimites do pantanal mato-grossense e nos
abrem as janelas para outros mundos, lugares esses que abrangem uma visão
global do estar no mundo, fazendo história com as outras coisas, as quais
também partilham desse mesmo espaço, criadouro de imagens. Assim, Barros
levanta nas pequenas coisas do chão, teias de aprendizagens que nos mostram a
grandeza de nos enxergar como integrante ao meio em que vivemos.
É com esta arte/brincadeira realizada por
meio das palavras que o poeta consegue embevecer o leitor e emaranhá-lo no seu
enredo gestador de sentidos. Portanto, se são as palavras que assaltam o
poeta, elas devem ser percebidas por suas disfunções e não por sua ação
inflexível de significar. Neste sentido, é preciso compreendermos que:
Cada vez que nos
servimos das palavras, as mutilamos. O poeta, porém, não se serve de palavras.
É seu servo. Ao servi-las, devolve-as à sua plena natureza, fá-las recuperar
seu ser. Graças à poesia, a linguagem reconquista seu estado original.
Primeiramente, seus valores plásticos e sonoros, em geral desdenhados pelo
pensamento; em seguida, os afetivos; por fim, os significativos. Purificar a
linguagem, tarefa do poeta, significa devolver-lhe sua natureza original (PAZ,
1982, p. 58).
Transformando a natureza em palavras, o poeta
devolve-lhe também o seu estado original, onde esta não mais é concebida ao
usufruto do ser humano, ao contrário é vista como ele próprio, ser humano/mundo
aliado à busca incessante pelo bem viver em comunhão com o outro. A unicidade
natureza/ser humano torna-se necessária para se perceber as outras coisas que,
juntamente, com ele, perfazem o meio ambiente. Visto sobre este ângulo o poeta
se apresenta como um ser humano rebelde, que ao invés de contaminá-la
com seus conceitos prévios, se deixa contaminar por ela, fazendo transparecer
pela linguagem a gênese fecunda e promíscua da natureza.
Natureza é força que inunda como os desertos.
Que me enche de flores, calores, insetos – e
me
Entorpece até a paradeza total dos reatores.
Então eu apodreço para a poesia.
Compreendemos que as palavras, ao impregnar o
poeta emprenhado pela natureza, corrompem os veios da linguagem. Assim,
com sua alma de menino, ao sair da sua concha a brincar com as palavras, desestrutura
a linguagem e, assim, a metamorfose acontece - é poesia. Neste espaço não se
permite hierarquias, não há poder classificador, fator que fornece abertura
para que Manoel declare:
[...]
Poesia
é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada.
Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho
profundidades (BARROS, 2010, p. 07).
As palavras que fazem uso do poeta são
aquelas que ainda rastejam no chão, que não foram contaminadas pela verdade
operante. É urgente compreendermos que a sofisticação da poesia manoelina se
projeta nos dejetos da sociedade moderna, tudo que é ignorado pela nossa
civilização é para o poeta elemento de poesia. É o nada que pelo olhar do poeta
torna-se instituinte, ele tira muitas palavras do sentido (in)significante do
dicionário, mostra a vivacidade dos resíduos rejeitados pela sociedade
capitalista e transforma-os em poesia, recriando a partir do primitivo novas possibilidades
de enxergar as inutilidades do mundo. Neste viés, talvez seja possível
compreender o princípio da metamorfose que sofrem as despalavras manoelinas.
É
nesta espiral que é possível entrelaçar culturas, que é possível sonhar com
sociedades sustentáveis. Por isso, a linguagem que desestrutura o poeta; são
entrecruzamentos que nos provocam a repensar os dogmas presentes na sociedade.
Despalavras que se tornam cada vez mais fecundas, à necessidade do sonhar, do
despertar, para que consigamos visualizar as relações de poder que operam no
âmbito social. Relações estas que, anulando as subjetividades tornam-se
injustas diante da diversidade e complexidade do mundo.
Barros
reforça, em inúmeros momentos, que com suas despalavras, nunca quis dizer nada,
apenas construir brinquedos com as palavras, ou quem sabe, transformar-se em
palavras para germinar esperanças. Assim, acredito que o poeta, na sua grandeza
existencial, talvez queira apenas nos incitar para o nosso nada mais
profundo e, tal qual Martin Buber, queira nos dizer: “não tenho ensinamentos a
transmitir [...] tomo aquele que me ouve pela mão e o levo até a janela. Abro-a
e aponto para fora. Não tenho ensinamento algum, mas conduzo um diálogo” (BUBER
apud ZUBEN, 1977, p.LXIX). As palavras que desacomodam o poeta e que
desestruturam a linguagem são aquelas que foram abandonadas pelo mundo das
convenções, deixadas na sarjeta. Elas nos convidam a criar sentidos, a perceber
que, “só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente,
permanente que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros” (FREIRE,
1987, p.58).
A maior riqueza do homem é a sua
incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não
aceito.
Não agüento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o
relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá
fora,
Que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
(BARROS,
2010, p. 374)
Manoel declara que seu intento maior[2],
é transformar a natureza em palavras, que é assaltado por elas de tal modo que
torna impossível não lhes dar ouvido. As palavras usam o poeta criador, que com
sua visão crianceira sai perambulando pelo pantanal de Mato Grosso, fazendo
peraltices que impulsionam as palavras a (des)estruturar não só a linguagem,
como também a percepção que temos de natureza. E, assim, “feitas de matéria
inflamada, as palavras se incendeiam mal são roçadas pela imaginação ou pela
fantasia” (PAZ, 1982, p.42).
3 (IN) CONCLUSÃO
Manoel
de Barros se apresenta envolto na relação interativa da linguagem com as coisas
do chão e, contaminado pelas palavras mostra que tanto na poética quanto no
ambiente natural, as percepções se multiplicam e mobilizam as subjetividades
dos sujeitos, construindo redes que contribuam para que amoleçam a estrutura
rígida da sociedade atual, onde a verdade que opera na diversidade tem
uma roupagem única. Esta compreensão nos conduz a um processo de aprendizagens
que se articulam, se desfazem e se refazem no contato com o outro, movimentos
que somatizam saberes, mostrando que é possível e necessário o aprender com o
outro.
Longe
de apresentar uma linguagem simplista ou palavras ingênuas, trata-se, o poeta,
de um ser humano composto por palavras, que com suas andarilhagens pelo mundo
saiu da concha (pantanal de Mato Grosso) a semear despalavras, por todos os
lugares pelos quais passou ou sonhou, delas brotaram aves, passarinhos,
árvores, gentes... e coisas. É a natureza (ser humano) transformada em
palavras. Estas coisas que levantam a poética do/no mundo.
4
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS,
Manoel. Poesias completas. São Paulo: Leya. 2010.
BUBER,
Martin. Eu e tu. Intr. e Trad. Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo:
Cortez & Moraes, 1977.
FREIRE,
Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Cortez, 1987.
PAZ,
Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982.
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