sexta-feira, dezembro 03, 2010

ENTRE SABERES E DESSABERES:
A POÉTICA AMBIENTAL EM MANOEL DE BARROS

Maria Elizabete N. de Oliveira – m.elizabte@gmail.com (Mestranda IE/UFMT)
Profª Drª Michèle Sato - Michelesato@ufmt.br (Orientadora – IE/UFMT)
Sônia Palma – soniapalm@gmail.com (GPEA/UFMT)

RESUMO
Esta abordagem descreve, uma parcial dos estudos sobre a afetividade do poeta mato-grossense, Manoel de Barros, e da utopia da Educação Ambiental pós-crítica, que percebe ser humano/objeto de forma indissociável e que considera as subjetividades, intricadas ao processo de aprendizagem do sujeito. Para tal, buscamos âncora na pesquisa qualitativa, a fim de trazer emanações, que contribuam em um olhar destituído de dogmas, e se perceba em constante relação com as outras coisas que compõem o cosmo. Na percepção de que não é possível, contemplar o meio ambiente, apenas como um bem natural ao usufruto do ser humano. Nesse sentido, o estudo consiste num processo híbrido, fenomenológico e bibliográfico, que apresenta percepções sobre os dessaberes descritos na poética de Manoel de Barros, que envolve os clássicos da literatura e das artes em geral, com os desheróis, pessoas comuns, que cruzaram o seu caminho, durante suas andarilhagens pelo mundo. Assim, apresentamos alguns desses seres humanos, por meio de fragmentos dos seus escritos, que contribuem para mostrar, a emergência em unirmos as três ecologias, mental, social e ambiental, citadas por Félix Guattari (2007), a fim de emanar a amorosidade e o conhecimento sensível sobre as coisas do mundo.
Palavras-chave: Educação Ambiental, poesia, dessaberes.





















ENTRE SABERES E DESSABERES:
A POÉTICA AMBIENTAL EM MANOEL DE BARROS

Maria Elizabete N. de Oliveira – m.elizabte@gmail.com (Mestranda IE/UFMT)
Profª Drª Michèle Sato - Michelesato@ufmt.br (Orientadora – IE/UFMT)
Sônia Palma – soniapalm@gmail.com (IE/UFMT)

(...) a arte, e toda ela, diz respeito ao mais fecundo do ser humano. Expressão de transcendência, de superação do espaço e tempo. Enfeixa os tempos e espaços em linguagem que une o singular ao universal, e nos arrebata.

Sato & Passos

O trabalho apresenta os dessaberes de Manoel de Barros, aliados a utopia da Educação ambiental pós-crítica, no intuito de mostrar o ciclo da vida presente em sua poesia. Desta forma, traz como temática, o poeta pantaneiro e a sua postura po-ética, diante da diversidade presente na natureza. Para tanto, o foco foi compreender as aprendizagens do autor, obtidas na convivência entre os clássicos e os desheróis, que caminham de mãos dadas em sua linguagem surreal e instigante. Nesta, é possível encontrar seres humanos, como: Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Pe Vieira, Roland Barthes, Shakespeare, Bernardo, velha Honória, Antônio Carancho, Claúdio, entre outros, numa conversa animada e festeira com o nosso poeta, sem o ranço de um saber universal ou a supervalorização de um sobre outro. Mas, ao contrário, onde eles se apresentam, de forma, a complementar os saberes, sobre a dinâmica do mundo.
Vejamos outros fragmentos de poesias, nas quais o poeta frisa a contribuição que obteve por entre os seus descaminhos.
Rogaciano era índio guató e me contou essa cosmologia (BARROS, 2001, p. 95).
Um girassol se apropriou de Deus, foi em Van Gogh (BARROS, 2001, p.94).
Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):
A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado. (BARROS, 2004a, p.75).
Mário-pega-sapo, de noite, abria em casa todos os
Sapos que pegava durante o dia em banhados, nos barrancos,
Nos monturos, nos porões, nos terrenos
Baldios, debaixo de caixas d’agua (BARROS, 2004a, p.77).
(...)Meu nome é Antônio Ninguém
Eu pareço com nada parecido (BARROS, 2004a, p.79).
Bola-Sete é filósofo do beco.
Marimbondo faz casa no seu grenho – ele nem zine. (BARROS, 2004a, p.81).
Esse Arthur Bispo do Rosário acreditava em nada e em Deus. (BARROS, 2004a, p.83).
Eu sei que Baudelaire que passou muitos meses tenso porque não encontrava um título para os seus poemas. Um título que harmonizasse os seus conflitos. (BARROS, 2004a, p.49).
O nada destes nadifundios não alude ao infinito menor
De ninguém.
Nem ao Néant de Sartre (BARROS, 2004b, p.14).
O padre Antônio vieira pregava de encostar as orelhas
Na boca do bárbaro.(BARROS, 2005. p. 47).
Esse é um verso de J. G. ROSA.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal. (BARROS, 2005, p. 23).
Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de
Contemplação dos restos.
E Barthes completava: Contemplar os restos é narcisismo.
Ai de nós!
Porque Narciso é a pátria dos poetas (BARROS, 2005. p.12).
Porque os passarinhos precisam antes de ser belos ser
Eternos.
Eternos que nem uma fuga de Bach. (BARROS, 2005, p.13).
Depois de encontrar-me com Aliocha Karamazoff,
Deixo o sobrado morto. (BARROS, 2007 p.35).

A descrição dos fragmentos acima, nos legitima a discorrer, que o poeta traz em suas poesias, o saber local e o global, de maneira dinâmica e participativa. Ou seja, ambos são apresentados intricados aos elementos do chão pantaneiro, reforçando a percepção de que o ser humano e o ambiente estão emaranhados, e, que, no entanto, a supremacia do saber clássico desaparece, dando lugar a uma troca de saberes, que dinamiza o processo de aprendizagem. A construção desses dessaberes, só é possível, se percebermos a inconclusão do ser humano e a sua capacidade de ser mais. Assim, o poeta descreve que: “(...) a gente é rascunho de pássaro não acabaram de fazer (BARROS, 2007, p.24). Portanto, passíveis de acolher e aprender com o outro. É com essa percepção, que Barros compõe os seus escritos e nos contagia com a sua ação criadora, sobre as coisas comuns e corriqueiras.
O ser humano, suas relações culturais, sociais e ambientais, em Barros, é apresentado como em um mosaico, em que os fragmentos contribuem no processo de construção do desenho. Dessa forma, faz jus a abordagem de Guattari (2007), quando este aborda a emergência de se unir as três ecologias, a fim de contribuir na busca por sociedades sustentáveis. Nesse processo, o poeta coloca em evidência, os aprendizados múltiplos, que adquiriu tanto com os heróis das artes em geral, como com as pessoas comuns que cruzaram o seu caminho. Para tal, utiliza-se da fertilidade da palavra, para ele, ela é o nascedouro que compõe gente, brota nele, naturalmente, o poeta acredita que esta fecundidade é por via do lastro brejal, que adquirira na infância e nunca perdera. Ou seja, seu corpo fornece o adubo necessário para que as palavras surjam e se multiplicam como heras na parede.
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando/
beijou os pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas
de orvalho.
BARROS, 2004a, p.61
A criação poética de Manoel, embora seja advinda das percepções adquiridas no substrato do chão, mais especificamente, do pantanal mato-grossense, com todos os seus ruídos e emanações; não menospreza a influência dos “faróis da poesia” e as aprendizagens obtidas com os dessaberes do ser humano “ordinário” (CERTEAU, 2005), com os quais conviveu durante suas andarilhagens pelo Chile, Bolívia e outros lugares decadentes. Assim, compreende-se, que é em meio à junção de saberes múltiplos, que o autor projeta suas percepções crianceiras, por intermédio do olhar de novidade, diante das coisas presentes no mundo. Nesse viés, o olhar de Manoel, é um olhar que não se habitua as coisas cotidianas, antes as transgride, apresentando-as como se a vissem pela primeira vez. Assim, o autor coaduna com as percepções de Alberto Caeiro sobre a visão que tem do mundo, homônimo de Fernando Pessoa, quando este descreve:
O meu olhar é nítido
Como um girassol. (...)
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes
Eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo.
Nesse sentido, o olhar do poeta, “não é apenas agudo, ele é intenso e ardente. (...) não é só clarividente, é também desejoso, apaixonado (CHAUÍ, 1988, p.77). É um olhar capaz de acolher a diversidade do mundo, que mobiliza os outros sentidos a ver no outro/outros, ele mesmo. Assim, Manoel de Barros, nos convida a outras possibilidades do olhar. Onde, “olhar não é apenas dirigir os olhos para perceber o ‘real’ fora de nós. É, tantas vezes, sinônimo de cuidar, zelar, guardar, ações que trazem o outro para a esfera dos cuidados do sujeito (CHAUÍ, 1988, p.78). É com esse cuidado amoroso que o poeta olha para as coisas do mundo, que inclui não apenas as pessoas, mas tudo aquilo que compõe o cosmo, dando ênfase, porém, nas inutilezas. Bachelard reforça essa proposição, ao enfocar que:
(...) se nosso coração fosse amplo o bastante para amar a vida e seus pormenores, veríamos que todos os instantes são a um tempo doadores e espoliadores e que uma novidade recente ou trágica sempre repentina, não cessa de ilustrar a descontinuidade essencial do tempo (BACHELARD, 2007, p. 108).

A percepção de Bachelard coaduna com a utopia da Educação Ambiental pós-crítica e com a poesia surrealista de Manoel de Barros, ao dar visibilidade, aquilo que é menosprezado pela modernidade, as coisas que não se quantificam, mas que ajuda-nos a aprimorar a sensibilidade e a amorosidade. Vale descrever, que a utopia da Educação Ambiental, vai ao encontro da percepção de Freire (1979, p.27), para quem “o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e anunciar a estrutura humanizante”. Portanto, se relaciona com a esperança, em contribuir com inéditos viáveis e, sonhos possíveis.
Importante salientar, que Barros não deixa de descrever a contribuição dos faróis da poesia, na construção desse olhar. Mostrando, assim, quão grande é sua alma e generosidade. Esse liame do conhecimento barreano, como é possível perceber na leitura dos fragmentos dos poemas, não se efetua na sucessão, mas de forma lacunar e inconclusa do presente, que clama por um devir que constitui o seu próprio sentido. Devir que consiste na percepção de que há coexistência de tempos (MERLEAU-PONTY, 1999). O autor faz questão, de frisar sua visão crianceira, sobre as coisas e oferece lugar para as novas aprendizagens, tanto que, a influência da aprendizagem do outro, é notável em suas poesias.
Vale ressaltar, que é preciso perceber a intimidade das coisas, para perceber a nuance que colore e transmite vivacidade ao ambiente, compreendendo a natureza para além do conceito de apropriação. A metamorfose, efetiva, em sua criação poética, contribui para que compreendamos que o ser humano não está sozinho no mundo, mas permeado por uma diversidade de elementos, que estrutura o cosmo e, dessa forma, apresenta suas similaridades e conflitos. Portanto, temos que estar abertos a novas aprendizagens. Nesse sentido, Barros declara:
Sou um sujeito cheio de recantos/os desvãos me constam./Tem hora leio Avencas/Tem hora Proust/Ouço aves e Beethovens/Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.
- O dia vai morrer aberto em mim.
(BARROS, 2004a, p.45).

Na poética barreana, a razão, como declara o próprio poeta, é acessório. Pois, jamais encontraremos a ideia em seus versos, já que a poesia é fenômeno da linguagem e sua linguagem apaga a ideia. A fim de reforçar essa perspectiva, José Miguel Wisnik (2005, p.32), salienta que: “o mundo, cosmos, natureza, história – está simultaneamente dentro e fora do mundo. (...) assuntos não dão poesia. O que dá poesia é o mergulho no silêncio da linguagem”. Esse mergulho é uma das marcas predominantes da poesia de Barros, que emerge de forma estrondosa nas palavras desse construtor de iguarias, que não aceita receitas prontas, ele mesmo vai compondo sua lista de ingredientes, na esperança de construir um novo mundo, que abrace as diferenças, para que juntos possam erguer uma sociedade menos desigual, pois: “O mundo é aquilo mesmo que nós nos representamos, não como homens ou como sujeitos empíricos, mas enquanto somos todos uma única luz e enquanto participamos do Uno sem dividi-lo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 7-8).
É necessário vencer o medo do abismo e arriscar-se a sentir o aroma da flor, porque o mundo também precisa de panfletários, poetas e loucos que não abandonem a causa ecologista para que a Terra continue habitável para todas as formas de vida dependentes de seus elementos circundantes (SATO & PASSOS, 2006, p. 23).

Portanto, avesso as normas e convenções, Manoel de Barros, sabe que é preciso transgredir muitos dos valores cultuados pela modernidade, para, desta forma, compreender e exprimir a essência da poética ambiental. Assim, a partir de uma linguagem desafiadora, ele descreve com maestria, seu conhecimento sobre a inocência contida na natureza e propõe iluminarmos o mundo com o incêndio dos girassóis de Van gogh. O fogo/flor, assim, se apresenta retratando o fogo amoroso, o sentido sensível do incêndio, que toma conta da alma, talvez, trazendo a luz, capaz de iluminar o ser humano para que ele perceba que há outras existências presentes no mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Manoel. O livro das ignorãças. 10 ed. - Rio de Janeiro: Record, 2001.
BARROS, Manoel. O livro sobre nada. 11 ed. - Rio de Janeiro: Record, 2004ª.
BARROS, Manoel. O guardador de águas. 2 ed. - Rio de Janeiro: Record, 2004b.
BARROS, Manoel. Tratado das grandezas do ínfimo. 3 ed. - Rio de Janeiro: Record, 2005.
BARROS, Manoel. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 2007a.
BARROS, Manoel. Matéria de poesia. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007b.
BACHELARD, Gastón. A intuição do instante. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Verus editora, 2007.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 8 ed. Rio de Janeiro:Vozes, 2002.
CHAUÍ, M. Janela da alma, espelho do mundo. NOVAES, A. O Olhar. São Paulo: Cia. das Letras, p. 31-63, 1998.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 18. ed. São Paulo: Papirus, 2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. (Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura). 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
NOVAES. Adauto. Pensar o mundo. In: ______. (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
SATO, Michèle; PASSOS, Augusto Luiz. Pelo prazer fenomenológico de um não-texto. In: GUIMARAES, Mauro (org.). Caminhos da educação ambiental: da forma à ação. 3 ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2006. (Coleção Papirus Educação)
SATO, Michèle; PASSOS, Luiz A. Arte-Educação-Ambiental. In: Revista Ambiente e Educação, Rio Grande: Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental, FURG, 2009 [no prelo].
WOLFF, Francis. Tudo é corpo ou vazio. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2

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