sexta-feira, dezembro 03, 2010

AS ASAS DA ARRAIA MANOELINA: PAIXÃO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL

OLIVEIRA, Maria Elizabete N. de
PALMA, Sonia
PPGE/UFMT/GPEA

[...] É a pura inauguração de um outro universo. Que vai corromper, irromper, irrigar e recompor a natureza.
Manoel de Barros

Essa abordagem objetiva apresentar uma possível reflexão sobre sociedades sustentáveis alicerçada na prosa poética de Manoel de Barros, poeta mato-grossense, mais especificamente em: Agroval . Essa produção efetiva o diálogo com a Educação Ambiental, na proposição de que o autor evidencia por meio de uma linguagem surrealista, a dinâmica do universo pantaneiro, deixando-nos embevecidos com o afazer incessante da biodiversidade para o equilíbrio do planeta. Neste cenário e, percebendo o ser humano como pertencente a esse contexto com sua ação criadora e envolvente, o poeta apresenta alguns princípios éticos que poderiam subsidiar o nosso olhar sobre o mundo. Nesse sentido, vale salientar que:

Nem todo trabalho torna o homem mais homem. Os regimes feudais e capitalistas foram e são responsáveis por pesadas cargas de tarefas que alienam, enervam, embrutecem. O trabalho da poesia pode também cair sob o peso morto de programas ideológicos: a arte pela arte, tecnicista; a arte pelo partido, sectária; a arte para o consumo, mercantil. Não é, por certo, dessas formas ocas e servis que tratam as páginas precedentes, mas daquelas em que a ruptura com a percepção cega do presente levou a palavra a escavar o passado mítico, os subterrâneos do sonho ou a imagem do futuro (BOSI, p. 226-227, 2000).

Assim, pensamos na poesia manoelina como aliada para outro olhar acerca do ambiente, pois o poeta apresenta valores ético-políticos nas asas incandescentes da linguagem surreal. Lugares onde é possível repensar as aporias que envolvem o contexto atual, haja vista que, segundo Sygmunt Bauman (2001) estamos vivendo numa época de incertezas, na qual tudo está passível de contestação, ou seja, é uma época dinâmica e que por isso mesmo exige uma reflexão mais acirrada da conjuntura que nos envolve e, muitas vezes, nos absorve, enredando nossas idéias e percepções a favor de um sistema desumano e cruel. A esse respeito o autor declara que esse é o período da modernidade líquida onde tudo escoa por entre os dedos, não há mais precisão ou rigidez de formas, pois “no mundo em que vivemos no limiar do século XXI, as muralhas estão longe de ser sólidas e com certeza não estão fixadas de uma vez por todas” (BAUMAN, 2003).

Manoel de Barros, de forma sutil, mas profunda, propõe que olhemos para outras sociedades presentes no cosmo, que estão aquém do nosso olhar de seres humanos inseridos em uma sociedade capitalista; onde a busca insana, pelo acúmulo de bens materiais, tolhe-nos a possibilidade de ser mais. A esse respeito propõe que olhemos para “[...] os indícios de ínfimas sociedades. Os liames primordiais entre paredes e lesmas. Também os germes das primeiras idéias de uma convivência entre lagartos e pedras” (2003, p. 22), assim, o poeta nos reporta à necessidade de voltarmos o olhar sobre as pequenas coisas que também compartilha do cosmo, a fim de aguçarmos o lado sensível que coexiste em nós, seres humanos. Pois, a falta de sensibilidade diante das coisas, talvez advinda do individualismo alimentado pela sociedade capitalista, nos impede de enxergar além da viseira que nos foi doada pelo sistema no qual estamos imbuídos e, consequentemente, de construirmos inéditos viáveis, propostos pelo exímio educador Paulo Freire (1999).

Por intermédio da linguagem poética, Manoel de Barros nos incita a olhar o espaço como possibilidade de reconstrução, de superação de dogmas e de verdades (in)contestáveis. Vale salientar que essa deturpação das normas, pode talvez, ser compreendida por meio do prefixo de negação, que em Manoel, muitas vezes, ao invés de negar, reforça a raiz da palavra. Desse modo, o poeta declara, em entrevista a TV Futura (2009), ser apaixonado por agramática, ou seja, a linguagem destituída de paradigmas. Compreendemos, desta maneira, que as regras muitas vezes encobertam o sentido polissêmico da linguagem. Nesse viés, “as formas estranhas pelas quais o poético sobrevive em um meio hostil ou surdo, não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo capitalista” (BOSI, p.165, 2000). Deste modo é que percebemos a poesia de Manoel de Barros, aquela que por meio da negação do já (im)posto reconstrói e ressignifica o mundo. Candido (1995) salienta que:

A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada como a literatura proscrita, a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominantes (CANDIDO, 1995, p.243).

Ao abordar literatura, Candido ressalta que pelo termo entende todas as criações de toque poético. Assim, Manoel de Barros por meio de uma linguagem que propõe uma fissura nos valores que o ser humano detem sobre o mundo, nos afeta os sentidos; pois deixa-nos entrever que a desigualdade do mundo, muitas vezes, é alicerçada pelas normas oficiais. A esse respeito, Candido salienta que:

A organização da sociedade pode restringir ou ampliar a fruição deste bem humanizador. O que há de grave numa sociedade como a brasileira é que ela mantém com a maior dureza a estratificação das possibilidades, tratando como se fossem compreensíveis muitos bens materiais e espirituais que são incompreensíveis. Em nossa sociedade há fruição segundo as classes (CANDIDO, 1995, p. 259).

Nesse viés, vale ressaltar que o autor traz a dialética entre os vários movimentos do saber, acreditando que o diálogo e a reflexão são necessários para compreendermos as aporias do mundo contemporâneo, em prol de um mundo com mais justiça social e humana. Por isso, a luta da Educação Ambiental no que tange a busca por sociedades sustentáveis se alicerça na percepção de que, embora sejam relevantes as discussões sobre desenvolvimento sustentável; devemos focá-las, principalmente, no re-conhecimento de outras vidas existentes, da superação de um olhar alienado que acredita no bem estar do ser humano, apenas arquitetado na primazia do capitalismo. Salientando que essa procura insana por melhores condições econômicas deturpa a compreensão de sociedades sustentáveis, pois não considera a intervenção destrutiva ao ambiente natural, e por sua vez, contribui significativamente para o aniquilamento dos seres humanos, principalmente aqueles que vivem em comunidades biorregionais.

Com esta percepção de inclusão de ser humano/mundo, no respeito e acolhimento dos diferentes, acreditamos que a produção poética, com sua licença para o sonho e para o devaneio subsidia a Educação Ambiental na sua utopia por um mundo com mais equidade social, ambiental e humana. A linguagem surrealista de Barros, centrada nos princípios de deformação para a reconstrução de um mundo novo, nos incita a eclodir, a nos despir de normas, principalmente, ao olharmos sobre o mundo, com todos os seus conflitos e idiossincrasias. Barros, em sua poesia criadora, nos mostra que o uni-verso, muitas vezes, pode ser percebido como pluri-verso, principalmente, quando nos pautamos na compreensão de sociedades sustentáveis. O poeta nos provoca, mostrando que há uma multiplicidade de linguagens no mundo, que não é evidenciada pelo ser humano e que, portanto, estas perpassam os princípios de regras estáticas e insuperáveis. Assim, com a linguagem de Manoel de Barros, é possível passarmos por um processo de deformação que nos incita à metamorfose, pois nos convida a perceber a sinestesia presente nas coisas ínfimas.

O poeta Manoel de Barros, por meio de uma justaposição de palavras, nos mostra em Agroval a troca mútua entre as coisas do chão, evidenciando a generosidade da natureza no seu processo de recomposição. Considerando o significado das palavras justapostas pelo autor, ele nos reporta a um universo que em primeira instância, e considerando a perspectiva racional, seria impossível de alimentar vidas, no entanto, ele reconstrói o nosso olhar sobre esse espaço, nutre os desejos de seres humanos com ânsia por um mundo mais solidário e justo. Por intermédio da transmudação do ambiente pantaneiro, o autor nos permite algumas reflexões sobre as leis do comércio, com base em um princípio ético-político que é também assegurado pela Educação Ambiental que prima por sociedades sustentáveis. A esse respeito declara o poeta: “[...] Penso na troca de favores que se estabelece; no mutualismo; no amparo que as espécies se dão. Nas descargas de ajudas; no equilíbrio que ali se completa entre os rascunhos de vida dos seres minúsculos” (BARROS, 2003, P. 22). Desta forma, vale incitar que ao concebermos a Educação Ambiental no cerne de uma sociedade excludente e coadunarmos com um processo de desenvolvimento sustentável que impera a favor da classe burguesa, estamos ferindo o princípio ético-político do ser humano. Haja vista que, considerando os moldes tradicionais, o que emerge da luta insana do comércio é o individualismo. Fator que contraria o processo de humanização descrito por Candido (1995), pois segundo ele é necessário percebermos o movimento complementar entre objetividade e subjetividade, pois este é:

O processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade para penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade e o semelhante (CANDIDO, 1995, p. 249).

Candido a partir desta abordagem nos retorna à tríade merleau- pontyana, incitando-nos a refletir sobre a correlação de sentidos em busca da (re)construção de uma nova sociedade. Desta forma, acreditamos que Manoel de Barros nos provoca a essa reflexão tomando como cenário o ambiente pantaneiro e suas diferentes formas de vidas, a fim de inferir que é possível articular um mundo mais ético centrado na diversidade, onde os conflitos e diferenças podem ser aliados na construção e reconstrução do mundo. Isso ressalta que não é possível pensar na sociedade de maneira homogênea. Para tal, o autor incita-nos a perceber que as diferenças de saberes são complementares e que, portanto, são responsáveis pela vivacidade da dinâmica do ambiente.

Penso num comércio de frisos e de asas, de sucos de sêmen e de pólen, de mudas de escamas, de pus e de sementes. Um comércio de cios e cantos virtuais; de gomas e de lêndeas; de cheiro de íncolas e de rios cortados. Comércio de pequenas jias e suas conas redondas. Inacabados orifícios de tênias implumes. Um comércio corcunda de armaus e de traças; de folhas recolhidas por formigas; de orelhas de pau ainda em larva. Comercio de hermafroditas de instintos adesivos. As veias rasgadas de um escuro besouro. O sapo rejeitando sua infame cauda. Um comércio de anéis de escorpiões e sementes de peixe (BARROS, 2003, p.2).

O processo de chuva e seca no pantanal também serve de combustível para que o poeta evidencie o processo mágico de perpetuação da vida no pantanal: “[...] quando as águas encurtam nos brejos, a arraia escolhe uma terra propícia, pousa sobre ela como um disco, abre com as suas asas uma cama, faz chão úbere por baixo - e se enterra” (BARROS, 2003, p.21 grifo nosso). E completa sua proposição:

E ao cabo de três meses de trocas e infusões – a chuva começa a descer. E a arraia vai levantar-se. Seu corpo deu sangue e bebeu. Na carne ainda está embutido o fedor de um carrapato de novo ela caminha para os brejos refertos. Girinos pretos de rabinhos e olhos de feto fugiram do grande útero, e agora já fervem nas águas das chuvas (BARROS, 2003, p. 23 grifo nosso).

O poeta chama os elementos da natureza para efetivar a espiral dinâmica do universo pantaneiro, onde a vida pode ser compreendida na versão sublime do planeta, onde cada um realiza empréstimo para que o outro possa continuar a viver, sem cobranças, apenas fazendo girar a roda do mundo. Nessa vertente, Manoel nos apresenta as asas da arraia, que segundo ele parece uma roda de carreta adernada, onde é possível vislumbrar o mundo. Assim, se o ser humano compreendesse a amplitude contida nas coisas ínfimas poderia, quem sabe, delinear o esboço de uma nova concepção de mundo. Este, alicerçado no princípio da amorosidade onde a educação emancipadora proposta por Freire teria o lugar supremo, pois “precisamos de algo para ressoar dentro de nós, que reflita aquilo que somos e dialogue com o mundo em que vivemos. E o mundo não é. Ele está sendo”. Nessa proposição, a poética de Manoel de Barros nos fornece elementos para um exercício de (trans)piração, pois incitando o nosso ser mais profundo ele nos provoca a ressignificar o mundo. Neste foco, ressalta Candido (1995, p.257):

(...) Só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é particularmente dramáticas em países como o Brasil, onde a maioria da população é analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura. Por isso numa sociedade estratificada deste tipo a fruição da literatura se estratifica de maneira abrupta e alienante.

O agroval manoelino, segundo a nossa compreensão, pode representar a luta da Educação Ambiental, que mesmo sufocada pelo poder neoliberal, tem a utopia de envolver as vidas e não vidas do cosmo, no processo dinâmico e acolhedor da liberdade e da emancipação. Ao buscar romper com o tradicionalismo, muitas vezes, ela é inserida em um vale de amargura, onde o caminho se faz excessivamente penoso. Porém, são momentos que instigam e nos lançam para o novo, tal qual a poesia manoelina, em um processo incessante de (re)descoberta e (re)criação de caminhos. Portanto, não visualiza essas passagens como castigo ou como sofrimento, mas como um processo necessário de quem luta por um mundo menos desigual, pois:

Há conflito entre a idéia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais, e a poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variedade complexidade de nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver (CANDIDO, 1995, p. 244).

Enfim, acreditamos que as asas da arraia manoelina podem ser vislumbradas nas utopias da Educação Ambiental ou vice-versa, pois o conhecimento é uma via de mão dupla, na qual o sonho de um mundo que acolhe os diferentes pode movimentar os princípios ético-políticos da solidariedade, centrados não na harmonia, mas na diversidade que acolhe e amplia os saberes, sabores e sonhos por sociedades sustentáveis.

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